Foi com enorme prazer que, recentemente, acedi a tomar parte
no ilustre rol de colaboradores deste blogue. Inicio, com a presente resenha, um
modesto labor que se possa constituir, minimamente, frutuoso ainda que,
relativamente, escasso, em termos quantitativos.
Tristan und Isolde
é um drama musical em três actos, composto por Richard Wagner entre 1857 e
1859, substancialmente baseado no romance homónimo do escritor medievo
Gottfried von Straßburg.
Originalmente apresentada há cerca de uma década, a encenação
de Harry Kupfer gravita em torno de
uma imponente escultura de um anjo, baseada numa imagem captada em Roma pela
fotógrafa alemã Isolde Ohlbaum, que se constitui centro nevrálgico do universo
dramatúrgico proposto.
A disposição móbil do objecto em questão, pontuando o
evolver da narrativa, concorre para a perspectivação, sob ângulos díspares, de
todo um conjunto de reentrâncias e depressões que o encenador vai operando, de
modo eficaz, na movimentação cénica.
Num plano secundário, surgem diversas lápides tumulares
envoltas num fundo composto por um painel branco, aludindo a um horizonte
espacial, que cede ao ocaso assim que os protagonistas sorvem o filtro.
Despretensioso e eficiente o jogo de luzes, alicerçado num
leque objectivo de analogias cromáticas, dominado, como forma de exemplo, por
tons argênteos (Liebesnacht) ou
rubros (Morte de Tristão).
Em Tristão, o norte-americano Ian Storey, iniciou a récita de modo discreto, evidenciando algumas
debilidades na região grave, acrescida de uma emissão algo pesada,
materializada num fraseado irregular. Detentor de um instrumento de volume
considerável, exibindo um registo agudo absolutamente inabalável e uma enorme
resiliência vocal, sucedeu em debelar as fragilidades patenteadas com um
segundo acto em gradual ascendente, culminando num delírio de assinalável
impacto dramático, no derradeiro acto.
Albergando um instrumento sólido, o Kurvenaldo de Martin Gantner surgiu excessivamente
vigoroso, denotando uma determinada agrestia na linha de canto e agudos algo
destimbrados. Manifesta mutação na vigília a Tristan no terceiro acto, marcada
por um assinalável lirismo e engajamento dramático, numa abordagem de agradável
efeito.
Possuidora de uma voz pujante, ainda que matizada de um
ligeiro metal tímbrico, Iréne Theorin
(substituindo Waltraud Meier) ofertou uma leitura fundada num basto dramatismo,
percorrendo de forma persuasiva o espectro emocional de Isolda. Não obstante a
tendência evidenciada para uma insistente estridência nas passagens em forte no registo médio-agudo,
destacou-se pela precisão do ataque no limiar da região aguda, designadamente,
na narrativa do acto inicial. O soprano concluiu com um Liebestod de grande contenção e desprovido de artifícios supérfluos
num belíssimo momento cénico.
Em reportório mais congenial (recorde-se a sua Giovanna
Seymour em Anna Bolena no MET), Ekaterina Gubanova gizou uma Brangânia
cúmplice na contracena com Isolda. Com um fraseado idiomático, assente em
graves e médios encorpados envoltos num timbre escuro, acusou, contudo, alguma
perda de espessura na coluna de som, sobretudo no registo agudo, soando em
esforço a linha vocal. Destacou-se, sobremodo, pela essência quase diáfana das
suas intervenções no dueto de amor.
René Pape foi um
Rei Marke absolutamente modelar no timbre cultivadíssimo, emissão homogénea e
execução irrepreensível da linha melódica. Em termos cénicos, esteve certeiro
na assunção do nobilíssimo monarca afrontado na honra e dignidade. O mais
constante em palco.
Florian Hoffmann,
em duplo papel (marinheiro e pastor), destacou-se pela elegância do timbre e
admirável emprego da meia voz, valorizando as páginas iniciais. O veterano Reiner Goldberg em Melot e Arttu Kataja como um piloto cumpriram
dignamente.
No elmo da Staatskapelle de Berlim, Daniel Barenboim evidenciou uma perfeita noção do monumental arco
dramático da obra. Admirável na exercitação da claridade e domínio das texturas
orquestrais, simultaneamente, obstando a que a leitura adquirisse um cariz
meramente analítico, foi absolutamente magistral na dilaceração impressa às
cordas no prelúdio do terceiro acto. Exemplar articulação orquestral com
notável execução em todos os naipes, avultando metais e madeiras. Habitual
frequentador da obra, o maestro argentino brindou o público com, porventura, a
interpretação contemporânea de referência.
Uma récita com intérpretes, globalmente, em bom plano e uma
soberba direcção orquestral.
Tristan und
Isolde: Staatsoper Unter den Linden at the Schiller Theatre, Berlin – 10th March 2012
It was with
enormous pleasure that, recently, I conceded taking part in the illustrious
list of collaborators on this blog. I’ll begin, with the present text, a modest
activity which might be able to constitute itself, minimally, fruitful, although,
quantitatively speaking, rather scarce.
Tristan und Isolde is a musical drama in three acts, composed by
Richard Wagner between 1857 and 1859, largely based in the romance of the same
name by the medieval writer Gottfried von Straßburg.
Originally presented
about a decade ago, Harry Kupfer’s
staging gravitates around an imposing sculpture of an angel, based on a photo taken
in Rome by the
German photographer Isolde Ohlbaum, which constitutes itself as neuralgic centre
of the suggested dramaturgic universe.
The mobile
disposition of the object in question, pinpointing the story’s development, puts
in perspective, from different angles, all sorts of recesses and hollows which the
director keeps operating, effectively, in stage deportment.
In the
background, there appear several gravestones wrapped in a white panel,
referring to some kind of spatial horizon, which gives way to dusk as soon as
the lovers drink the love potion.
Unassuming and
efficient lighting, based on an objective gamut of chromatic analogies, dominated,
as an example, by silvery (Liebesnacht) or red (Tristan’s death) tones.
As Tristan,
the American Ian Storey, started the
performance discreetly, showing some weaknesses in the bass notes, accompanied
by a somewhat heavy emission, materialized on irregular phrasing. Holder of an
instrument with considerable volume, exhibiting an absolutely unshakable top
register and a huge vocal resilience, he succeeded in taming the manifested
frailties with a second act characterized by increasing power, culminating with
a remarkable delirium in its dramatic impact, in the final act.
Harbouring a
solid instrument, Martin Gantner’s
Kurwenal began with excessive vigour, denoting some roughness in the line and
whitish top notes. Clear mutation in the vigil to Tristan in the third act,
distinguished by great lyricism and dramatic thrust, in a reading of nice
effect.
Possessor
of a mighty voice, although lightly tinted in a metallic tone, Iréne Theorin (subbing for Waltraud
Meier), offered a reading based on great dramatics, persuasively going through
Isolde’s emotional spectrum. Notwithstanding some tendency towards an insistent
stridency on forte passages in the break of the voice, she distinguished herself
for the precision of the attack in the high register, namely, in the narration
of the first act. The soprano concluded with a Liebestod of great restraint,
shorn of superfluous artifices in a striking scenic moment.
In more
congenial repertoire (recall her Giovanna Seymour in Anna Bolena at the MET), Ekaterina Gubanova drew an accomplice
Brangäne in her rapport with Isolde. With idiomatic phrasing, based on bulky
lows and mediums wrapped in a dark tone, she, however, accused some loss of
thickness in the sound column, mainly in the top register, the singing line
soaring somewhat effortful. She impressed greatly by the almost diaphanous
essence of her interventions during the love duet.
René Pape was an absolutely exemplary King Marke displaying
a highly cultivated tone, a homogeneous emission and an irreproachable
negotiation of the melodic line. Scenically, he was most accurate in performing
this noblest of monarchs outraged in his honour and dignity. He was the most
regular player on stage.
In a double
commitment, Florian Hoffmann (as a
sailor and a shepherd), draw attention to himself for the elegance of tone and
the notable use of half voice, valorising the initial pages. The veteran Reiner Goldberg in the role of Melot
and Arttu Kataja as a pilot fulfilled
their parts with dignity.
At the elm
of the Berlin Staatskapelle, Daniel
Barenboim exhibited a perfect notion of the work’s monumental dramatic
arch. Admirable in exercising clarity and mastery of the orchestral textures,
simultaneously, avoiding that the reading took on an analytic nature, he was
absolutely magisterial in the way he achieved the strings to depict dilaceration
in the prelude to the last act. Exemplary orchestral articulation with notable
work from every section, both brass and woodwind standing out. Customary
interpreter of this work, the Argentinean conductor offered the public with, possibly,
the contemporary reference reading.
A
presentation with performers, globally, on a good level and terrific
conducting.
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É com enorme satisfação e orgulho que o blogue "Fanáticos da Ópera / Opera Fanatics" acolhe esta primeira contribuição de Hugo Santos, um profundo conhecedor da arte lírica e autor de um dos mais recomendáveis blogues temáticos escrito em língua portuguesa, Memória da Ópera, fonte inesgotável de de conhecimentos e de degustação operáticos.
ResponderEliminarO presente texto com que nos brinda espelha a invulgar qualidade do autor, como todos os leitores deste blogue terão o privilégio de apreciar.
Em nome dos "Fanáticos da Ópera /Opera Fanatics" agradeço, muito reconhecido, ao Hugo Santos, a distinção que nos concedeu, ao ter aceite ser mais um autor deste espaço. Bem haja!
Parabéns ao blog pela excepcional crônica!
ResponderEliminarParabéns ao sr. Hugo Sangos!
Viva, Hugo. É bom vê-lo também por aqui.
ResponderEliminarEm relação a estas récitas de "Tristan und Isolde", já tinha lido um texto no In Fernem Land do Joaquim, que também lá esteve. O blogue está escrito em Catalão, mas tem um tradutor.
Agradeço, imensamente penhorado, as manifestações de apreço aqui depositadas. O meu bem-haja!
ResponderEliminarObrigado Hugo pelo seu contributo para este blog, e principalmente pela estreia com o meu compositor favorito, com uma crítica de excelente qualidade!
ResponderEliminarEste Tristão esteve nos meus planos iniciais para a temporada mas ficou para 2º plano por vários motivos, à medida que foram saindo outras temporadas. Ainda bem que pode estar presente e satisfazer a minha curiosidade sobre a récita. Não sabia que Waltraud Meier havia sido substituída. Pape deve fazer um Marke brutal ao vivo. Ainda não tive oportunidade de o ouvir neste papel.
Continuação de boas óperas e venham mais críticas!
Caro Hugo,
ResponderEliminarApesar de ter perdido o estatuto de 'membro mais recente no blogue', quero dar-lhe as boas-vindas :) É claro que, quanto mais autores houver, mais plural será o blogue, o que só lhe acrescenta notoriedade. E, tendo em conta o que de muito bom deixa escrito, mais notoriedade terá. O Hugo será (ou antes, é) uma enorme mais-valia!
Não sou (ainda) um wagneriano. Não por "desgosto", mas por falta de dedicação à ópera alemã. Por isso, não tenho fundamentos para opinar sobre esta ópera. Todavia, pelo pouco que conheço, creio que Daniel Barenboim é um dos melhores da actualidade em Wagner e (creio poder afirmá-lo) René Pape, com a sua excelente voz, dará ao papel de Marke uma qualidade inexcedível. Ainda bem que valeu a pena a sua deslocação a Berlim.
Espero encontrá-lo brevemente neste blogue. Saudações
Parabéns, HS e Fanáticos. Bem a propósito!!
ResponderEliminarUltimamente, tenho andado a ouvir várias gravações de Pape a interpretar papéis de Wagner, e estou curioso para saber se o barítono soa ao vivo tão excelente como nas gravações. Ideias??
Estas têm sido os principais motivos de arrepio:
http://www.youtube.com/watch?v=0HI3pa5cE8I arrebatador
http://www.youtube.com/watch?v=zSrnFg4Gebo formidável
http://www.youtube.com/watch?v=pY5wD0WeZWI assombroso