terça-feira, 11 de outubro de 2016

CARMEN de George Bizet — Teatro Nacional de São Carlos, 8.10.2016

(Review in English below)

Carmen, a obra maestra de Bizet, dispensa apresentações. A sua popularidade entre todos os públicos é reflexo da qualidade do drama baseado na novela de Proper Merimée

Carmen é das óperas mais representadas em todo o mundo e é-o pela música soberba, a vivacidade e sequência cénica, o realismo da história… a personalidade de Carmen. Mas elogiar a obra torna-se irrelevante. E nem vale a pena contar a história, pois toda a gente sabe que a cigana perversamente sedutora é morta passionalmente pelo seu amante cego de ciúme, Don José.


A encenação que nos foi proposta é a muito aclamada de Calixto Bieito. O primeiro acto começa com um cigano com aspecto muito “manhoso” a dizer em espanhol que o amor é mais perigoso do que a morte. Ao centro, um mastro para içar a bandeira espanhola. Ao canto, uma cabine telefónica suja, cheia de anúncios de prostituição. Surge depois o coro dos militares vestidos de forma contemporânea. Um, de cuecas, corre em círculos até cair desfalecido, tal a dureza do provável castigo. Michaela é assediada por militares ameaçadores e atléticos. As cigarreiras aparecem de bata enquanto assediam os militares. Carmen está na cabine telefónica vestida com camisa de noite preta debaixo de uma bata aberta. Provoca os militares, nomeadamente Zuniga (aqui um cantor morbidamente obeso) que, sendo sempre agressivo, é também muito destratado. No segundo acto, a taberna é transformada num espaço onde entra um conjunto de Mercedes-Benz dos anos 70. A acção decorre de modo convencional. O terceiro acto passa-se no topo de uma montanha onde está um omnipresente e gigante outdoor que representa o touro espanhol típico que está espalhado em todo o território de Espanha. As cartas são lançadas no capot de um dos 5 carros em palco. No último acto, a acção desenrola-se numa praça despida em que Carmen, visivelmente amedrontada com os ciúmes e ameaças de um descontrolado Don José, morre violentamente degolada.

Trata-se de uma encenação modernizada que segue de forma eficaz o texto e permite o desenrolar da acção de modo fluente e visualmente interessante. Não direi que enche o olho, mas é agradável.


A Orquestra Sinfónica Portuguesa foi dirigida de forma vívida e colorida pelo maestro escocês Rory MacDonald. Mostrou um excelente entrosamento com os músicos, privilegiou o canto e soube criar um ambiente simultaneamente festivo e dramático.

O Coro do Teatro Nacional de São Carlos teve uma boa prestação vocal e cénica, assim como o Coro Juvenil de Lisboa que se apresentou com qualidade e muita energia.


Entre os cantores, o destaque vai indubitavelmente para a excelente Carmen do jovem mezzo-soprano dramático da Lituânia, Justina Gringyte. O mezzo-soprano já ganhou o Young Singer Prize da edição de 2015 do International Opera Awards. Tem uma voz com um timbre muito bonito e uma boa projecção em toda a amplitude da voz, ao que aliou uma sensibilidade interpretativa assinalável, conseguindo colorir com diferentes matizes as densidades do drama. Cenicamente, tem uma óptima figura e uma presença forte, tendo sido sensual e intrigante, mas também decidida e corajosa, apesar da situação limite em que se encontrava. Destacaria a sua Habanera no primeiro acto e a cena final, onde foi muito convincente.


O tenor sul-africano Lukhanyo Moyake foi um Don José aceitável. O jovem tenor foi um Don José dividido entre o dever e a paixão que se foi transformando eficazmente num perigoso homem ciumento, ainda que a sua presença cénica forte tenha sido, aqui e ali, prejudicada pela sua atenção primordial ao canto. A voz é forte e bem audível, mas o timbre é algo áspero e não foi especialmente lírico no fraseado (o sotaque também não ajuda), o que comprometeu a sua intensidade dramática e qualidade global.


Escamilo foi o barítono americano Nicholas Brownlee, recentemente vencedor do prémio  para Zarzuela da edição de 2016 da Operalia. A sua boa expressividade vocal, voz segura e potente associada uma boa presença cénica fez dele um Escamilo de qualidade.


O soprano Sarah-Jane Brandon, vencedora do prémio Kathleen Ferrier de 2009, foi uma Micaela não tão doce ou ingénua como é caracterizada em muitas encenações. A interpretação cénica de Brandon foi eficaz: foi uma Micaela algo sedutora e muito decidida a levar consigo o prometido noivo. A voz é muito bonita, o agudo é fácil e bem projectado, mas acho que lhe faltou alguma doçura. 

Os restantes cantores cumpriram bem nos seus papéis, quer vocal, quer cenicamente. Destacaria a voz potente e imponente e pesada figura do baixo Kneel Watson que nos deu um Zuniga com quem dificilmente se empatiza. 

Foi, pois, uma récita agradável, numa Carmen que apostou em promessas do canto lírico e numa encenação eficaz e globalmente bem aceite na cena internacional.

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(Review in English)

Carmen, Bizet's masterpiece, needs no introduction. Its popularity among all type of public is the reflex of the quality of the drama based on the novel by Proper Merimée.

Carmen is one of the most worldwidle represented operas because of it’s superb music, vivacity and scenic sequences, the realism of the story… and, of course, Carmen's personality. But praise the masterpiece becomes irrelevant. It’s algo not worth telling the plot, because everyone knows that the wickedly seductive gypsy is passionately murdered by his blinded by jealousy lover, Don José.

The staging that has been proposed is the Calixto Bieito’s much acclaimed mise en scene. The first act begins with a gypsy with very "sly" aspect saying in Spanish that love is more dangerous than death. At the center, a mast to hoist the Spanish flag. At the corner, a dirty phone booth, full of prostitution ads. The chorus is dressed on contemporary military clothes. One among them is continuously running in circles (un)dressed in panties. He runs until falling faint by the hardness of the most likely punishment. Michaela is harassed by threatening and athletic military. The cigarette women appear on white smock frock while besieging the military. Carmen is in the phone booth dressed in black nightshirt under an open smock frock. She is constantly provoking the military, including Zuniga (here a morbidly obese singer) who is always aggressive with everybody, while also very mistreated. In the second act, the tavern is transformed into a space where it enters a set of '70s Mercedes-Benz. The action takes place in a conventional manner. The third act is set in the top of a mountain where a omnipresent giant billboard represents a typical Spanish bull commonly spread across the whole of Spain territory. The cards are laid on the capot of one of the 5 cars on stage. In the last act, the action takes place in a naked square. Carmen, visibly frightened by a jealous and uncontrolled Don José, dies with her throat cut.

It is a modernized staging that follows effectively the libreto and allows the action flowing in visually and dramatically interesting way.

The Portuguese Symphony Orchestra was vividly directed by the Scottish conductor Rory Macdonald. He showed an excellent rapport with the musicians and manage the score in order to create both a festive and dramatic environment.

The São Carlos National Theatre Choir had a good vocal and scenic performance, as well as the Youth Choir of Lisbon who presented with quality and a lot of energy.

Among the singers, the highlight will undoubtedly to the Carmen by the young dramatic mezzo-soprano from Lithuania, Justina Gringyte. The mezzo-soprano has won the Young Singer Prize of the 2015 edition of the International Opera Awards. She has a beautiful voice and good projection for the full range of her potent voice. That qualities are allied with a remarkable interpretative sensitivity, colouring the drama density spectrum with different nuances. Scenically, she has a gorgeous and a strong presence being as sensual as intriguing, but also determined and courageous, despite the extreme situation she was in. I should highlight her Habanera in the first act and the final scene, which was very convincing.

The South African tenor Lukhanyo Moyake was an acceptable Don José. The young tenor was a Don José torn between duty and passion that was effectively transformed into a dangerous jealous man, though his strong stage presence has been, here and there, hindered by his primary attention to the singing technique. The voice is strong and always audible, but the tone is something harsh and was not particularly lyrical in phrasing (the french accent is not the best, too), which committed her dramatic intensity and overall quality.

Escamilo was the American baritone Nicholas Brownlee, recently winner of the Operalia 2016 edition prize for Zarzuela. His good vocal expressiveness, secure and powerful voice associated with a good stage presence made him a great Escamilo.

The soprano Sarah-Jane Brandon, winner of the 2009 Kathleen Ferrier award, was a Micaela not as sweet or naive as she is featured in many stagings. The scenic interpretation of Brandon was effective: she was a Micaela somehow seductive and resolved to rescue her promised fiancé. Her voice terrifically beautiful, easily managed, but I think that lacked some sweetness in her interpretation.

The remaining singers did well their roles, whether vocal or scenically. Highlight to the powerful and imposing voice and heavy figure of Kneel Watson that gave us a Zuniga with whom we hardly empathise.


It was therefore a pleasant opera afternoon, a Carmen who bet in promising opera singers and in an effective and globally well acclaimed stage.

7 comentários:

  1. Caro camo_opera,

    Ao contrario do que é habitual, desta vez estou em total desacordo consigo. Acabo de assistir a uma récita desta Carmen e o espectáculo resume-se numa palavra – Mau!

    Vamos por partes:
    - A encenação é má e agressiva, aliás do Bieito não esperava outra coisa. Explora gratuitamente a nudez masculina e, onde deveria transbordar sensualidade, a Carmen não revela nem laivos! E é surpreendente que assim seja porque a cantora, ao contrário das outras, é jovem, alta e tem um corpo que até se prestaria a isso.

    - Os solistas, na minha opinião, têm todos vozes feias e nenhum teve desempenho cénico convincente. Justina Gringyte (Carmen) é sempre bem audível mas o timbre é desagradável. Como referi, nunca conseguiu transmitir sensualidade nem outros sentimentos que a personagem encerra. Lukhanyo Moyake (Don José) também cantou alto mas o timbre é rude e pouco agradável. Nicholas Brownlee (Escamillo) apenas cantou, de forma desinteressante, não se preocupando minimamente com a representação. Foi de uma banalidade confrangedora. Sarah-Jane Brandon foi uma Michaëla estridente e sem qualquer desempenho cénico. Finalmente Keel Watson (Zuniga) era tão obeso que a sua figura fazia esquecer tudo o resto. Ainda assim, os melhores foram Carlos Guilherme (Remendado), Joana Seara (Frasquita) e Carla Simões (Mercédès).

    Esta récita é uma excelente demonstração de que cantar alto não é, de todo, cantar bem!

    - O coro do Teatro de São Carlos esteve aceitável. O coro juvenil de Lisboa foi, de longe, o melhor!

    Na récita a que assisti, não fui apenas eu a não gostar pois ouviram-se apupos, “pateadas” e outras manifestações de desagrado, entre os aplausos, alguns entusiásticos. Há gostos para tudo...

    E onde estão os cantores portugueses? Espectáculos com estrangeiros como estes provavelmente serão muito mais caros e seguramente são muito piores do que com cantores nacionais.

    Começou mal a temporada do São Carlos.

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    1. Tenho pena, Fanático_Um, mas é a isto que estamos condenados, o estilo Bieito está a dar porque agrada a públicos "alargados"...

      Um dia ninguém saberá o que eram as óperas tal como se viam no seu tempo, ou pelo menos respeitosas desse gosto.

      E o que magoa é que a música, as vozes, tudo, foi composto a pensar num certo tipo de encenação condizente com a época. Música e canto barrocos (já houve !) com estética de Bieito é uma cacofonia ! Mas, claro há quem goste, há sempre.

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    2. Não posso estar mais de acordo consigo Mário, é assim mesmo!

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  2. Sou sempre um bocado benevolente com o TNSC. Sou demasiado novo para ter assistido ao seu período áureo, o que faz com que as minhas expectativas sejam sempre baixas e, se corre benzinho, tendo a elogiar. Não o consegui fazer, por exemplo, na recente triologia Verdi porque foi, de facto, muito má.

    Ainda assim, essa récita deve ter corrido particularmente mal.

    Os cantores devem ter estado uns furos abaixo. É verdade que nenhum foi muito bom, com destaque para o tenor (não o destruí por decoro). A excepção foi Gringyte que esteve bem no sábado e que, creio, poderá crescer no papel. O Escamilo foi aceitável e a Micaela, um pouco menos, mas sem destoar. Dos portugueses, que me abstive propositadamente de comentar, só o Carlos Guilherme cumpriu bem. Por exemplo, a Joana Soares representou bem, mas cantou sempre em forte e com tendência à estridência. Mas, ainda assim, estou em crer que terá corrido bem pior ontem. Aliás, ou o público era especialmente conhecedor, ou, a acreditar na homogeneidade do público, ontem calhou-lhe, dentro da qualidade actual do TNSC, a fava.

    A encenação, como diz, é agressiva, mas essa é uma (má) tendência actual da ópera. Veja-se a encenação do Rigoletto da ROH que é, no meu entender, de um extremo mau gosto. Mas acho que, apesar das críticas que faz e com as quais concordo, que cumpria globalmente a sua função, mas sem qualquer rasgo de génio.

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  3. Estou em crer que o fulcro da produção em causa residirá, ostensivamente, em Calixto Bieito. A dimensão musical terá sido algo secundarizada, tal como o estatuto inerente à distribuição vocal atesta.

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  4. Não vi esta Carmen; tive no entanto um feed-back que está quase a meio caminho dos vossos comentários: que a encenação era melhor que as expectativas e não contrariava nem música nem libretto, que a mezzo lituana era excelente e tinha tudo para poder vir a ser uma Garanca, mas que todos os outros cantores eram bastante fracos, sobretudo o Don José e a Micaela. Vendo como comprei.

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    1. Não perdeu nada em não ver, Gi. Quem lhe deu o feed-back foi muito generoso. A encenação é deplorável e os cantores foram maus. Uma negação do que deveria ser a Carmen, a ópera que sempre recomendo aos iniciados. Mas se for assim, é melhor começar por outra...

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