sábado, 4 de junho de 2016

LUCIA DI LAMMERMOOR, Royal Opera House, Londres, Maio de 2016

(review in English below)

A encenação de Katie Mitchell desta Lucia di Lammermoor coloca a acção na época victoriana, quando emerge o feminismo. Lucia é uma personagem determinada, nada submissa, mas esmagada pelo conservadorismo masculino dominante.
No palco, dividido a meio, vêem-se sempre dois momentos distintos em simultâneo.


No 1º acto é o cemitério com a fonte de um lado e o quarto de Lucia no outro. Lucia veste roupas masculinas para se encontrar com Edgardo e, no encontro, têm relações sexuais (a cena é decente). Os fantasmas (da mãe e da rapariga) aparecem e serão presença frequente em toda a récita. O dueto de amor final entre Lucia e Edgardo termina com o fantasma entre os dois.

No início do 2º acto, Lucia está no quarto mas corre subitamente para vomitar na casa de banho (magníficos os cenários de Vicki Mortimer). Está grávida e partilha o segredo com a dama de companhia Alisa.
Sempre com obstinada negação, reage às ordens do irmão para se casar com Arturo, apesar das cartas forjadas de Edgardo que lhe mostram. O casamento acaba por acontecer, em ambiente festivo, quando Edgardo reaparece.

No 3º acto, quando Arturo entra no leito nupcial onde está Lucia, é assassinado por Alisia que está escondida atrás da cama. As duas mulheres esfaqueiam-no e estrangulam-no, num assassínio premeditado. Na cena paralela há festa, num grande salão de caça com uma mesa de bilhar ao centro.
Na sequência do assassinato de Arturo, Lucia aborta e fica totalmente coberta de sangue na região abdominal e pernas, o que a leva à loucura. A “cena da loucura” é interpretada em cima da mesa de bilhar, onde Lucia, coberta do seu próprio sangue, vê os fantasmas (incluindo o de Edgardo). A ópera termina com a Lucia morta na banheira, a transbordar água e sangue, onde é encontrada por Edgardo, que se degola.



Apesar de nenhum dos cantores solistas ter sido perfeito, sob a direcção musical de Daniel Oren assistiu-se a um espectáculo de grande categoria, independentemente da polémica sobre a encenação. Coro e orquestra ao mais alto nível, com a grande mais valia da harmónica de vidro na cena da loucura.



Aleksandra Kurzak interpretou com grande dignidade o difícil papel de Lucia. Cenicamente esteve ao mais alto nível e vocalmente também foi muito boa, faltando-lhe apenas alguma doçura vocal em certos momentos. A cena da loucura foi marcante, embora tenha sido parca na coloratura, que outras oferecem generosamente.


O tenor Stephen Costello foi um Edgardo de grande categoria, timbre bonito, voz sempre bem audível e afinada. Uma agradável surpresa, depois da última vez que o tinha ouvido, em que ficou muito aquém do desejável.


O melhor da noite foi o Enrico do barítono Artur Rucinski, que não conhecia. Voz poderosíssima, muito bonita e expressiva, sobre o coro e a orquestra. Muito credível em cena, foi fantástico.


O tenor David Junghoon Kim foi um Arturo vocalmente bem, mas a figura do cantor, muito obesa, não ajudou nada nesta encenação e até provocou muitos risos na dramática cena em que é assassinado.


Também muito bem foram o cínico Raimondo de Metthew Rose, com uma grande interpretação vocal, o Normanno de Peter Hoare e a fiel Alisa numa bela interpretação de Rachel Lloyd.


Um espectáculo marcante.






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Lucia di Lammermoor, Royal Opera House, London, May 2016

Katie Mitchell's staging of this Lucia di Lammermoor places the action in the Victorian era, when feminism was emerging. Lucia is a woman with a character, not submissive, but overwhelmed by the dominant male conservatism. The stage was divided in the middle and we could always see two distinct actions simultaneously.

In the 1st act the cemetery with the fountain is on one side and Lucia’s room on the other. Lucia dresses men's clothing to meet Edgardo and, at the meeting, they have sex (the scene is decent). Ghosts (of her mother and of the girl) appear and are frequently presence throughout the performance. The final love duet between Lucia and Edgardo ends with the girl’s ghost between the two.

At the beginning of the 2nd act, Lucia is on the bed but suddenly runs to vomit in the bathroom (the scenery by Vicki Mortimer is magnificent). She is pregnant and sharing the secret with Alisa. Always obstinate in denial, she reacts to her brother's orders to marry Arturo, despite the forged letters of Edgardo showing to her. The marriage ends up happening in a festive environment when Edgardo reappears.

In the 3rd act, when Arturo enters the bedroom to meet Lucia on the bed, he is murdered by Alisia that is hidden behind the bed. The two women stab him and strangle him in a premeditated murder. In parallel we see a party in a large hall hunting with a pool table in the centre.
Following the murder of Arturo, Lucia has a miscarriage and is completely covered in blood in the abdominal area and legs, which leads her to madness. The "mad scene" is interpreted on the pool table where Lucia, covered with her own blood, sees the ghosts (including Edgardo’s). The opera ends with Lucia dead in the bath overflowing water and blood, which is found by Edgardo, who kills himself.

Regardless of the controversy about the staging and although none of the soloists had a perfect performance, it was a very good night of opera. Musical direction of Daniel Oren was excellent. Choir and orchestra were at the highest level, with great added value of the glass harmonica in the madness scene.

Aleksandra Kurzak played with great dignity the difficult role of Lucia. Scenically she was at the highest level and vocally she was also very good, but lacking some vocal sweetness at times. The scene of madness was remarkable, although she was sparse in some vocal coloratura that others offer generously.

Tenor Stephen Costello was a good class Edgardo, beautiful timbre, audible voice and almost always in tune. It was a pleasant surprise after the last time I had heard hem, when he performed far from the desirable.

The best of the night was baritone Artur Rucinski, whom I did not heard before. Powerful voice, very beautiful and expressive and always over the choir and the orchestra. Very credible on stage, he was fantastic.

Tenor David Junghoon Kim was a vocally acceptable Arturo, but the figure of the singer, very obese, did not help in this staging and even caused some laughter during the dramatic scene in which he is murdered.

Also very good were the cynical Raimondo by Metthew Rose, with a great vocal interpretation, Normanno by Peter Hoare and faithful Alisa, a beautiful interpretation of Rachel Lloyd.

An impressive perfromance.


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4 comentários:

  1. Quando assim é... está-me a parecer, pelo que leio aqui, que o Covent Garden é mais coerente que o MET, mesmo que mantenha um perfil menos ambicioso, sem grandes estrelas. Obrigado por mais um excelente relato, Fanático_Um. A Lucia é uma das suas grandes favoritas, não é ?

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    1. Sim Mário, no belcanto é a Lucia e a Norma, mas há muitas outras, noutros estilos, que me encantam, assim os músicos (e o encenador) ajudem.

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  2. Fico contente por saber que a ROH coonseguiu "recontar" a Lucia de forma tão original: por um lado em linha com a violência e a crueldade que subjazem no libretto e, por outro lado, contrastando o ambiente musical criado pelo compositor. Gostaria só de fazer notar, a propósito do comentário sobre o tenor Kim, que tenho obervado que o aspecto estético dos cantores ganha relevo proporcionalmente à "actualização" da encenação. Só vem demonstrar que o mundo da ópera está cada vez mais preocupado com aspectos visuais do que musicais. Aliás, no mais-do-que-controverso Anel de Bayreuth (onde a escolha do Botha para Siegmund foi fortemente criticada devido à obesidade), o único consenso que parece existir é que o encenador Castorf foi o mais odiado da equipe e, ao mesmo tempo, aquele que recebeu mais destaque da audiência - mesmo em comparação com os cantores e os músicos! A representação da ópera está a entrar numa nova era.

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    1. Apesar de ser um "fanático" por ópera, não sou daqueles que dizem que a ópera é para ver de olhos fechados. Não partilho dessa opinião, a música é a componente major, aceito pacificamente, mas a encenação é também muito relevante para mim. Por isso o aspecto visual dos cantores também conta, sobretudo tendo em consideração as personagens que interpretam. Não fica bem uma jovem apaixonada de tenra idade ser interpretada por uma sexagenária, o mesmo se passando com os homens.
      O que mais me incomoda actualmente são as encenações. Por vezes o desejo de inovar é tal que o que vemos nada tem de próximo do original e, frequentemente, é muito mau e muito feio.
      Mas ver a ópera é, para mim, também essencial. Se o não fosse, passavam-se a fazer as óperas em versão concerto, ficaria muito mais barato e para os que se preocupam apenas com a música, estaria perfeito mas... não seria ópera!

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